A mulher transexual independentemente de ter sido submetida a cirurgia de transgenitalização deve estar sob a proteção legal e tem direito a medidas protetivas com base na Lei Maria da Penha.
Esse é o entendimento do Ministério Público Federal em manifestação enviada ao Superior Tribunal de Justiça no âmbito de recurso especial elaborado pelo MP-SP contra decisão do TJ-SP, que negou a concessão de medidas protetivas em favor de uma mulher transexual agredida pelo seu pai. O REsp 1977124/SP é de relatoria do ministro Rogério Schietti.
Na manifestação, o MPF inicialmente argumentou que o Supremo Tribunal Federal já fixou entendimento de que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. O parquet também sustenta que ao restringir a aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha à acepção biológica (sexual) de mulher, excluindo como sujeito passivo o transexual feminino, o acórdão recorrido contrariou o artigo 5° da Lei 11.340/2006.
O MPF alega que a Lei Maria da Penha tem por finalidade corrigir distorções históricas, culturais e sociais que vitimizam a mulher em razão do gênero e, por isso, se justifica a invocação do instrumento normativo para a proteção da mulher trans.
“Alinha-se com essa compreensão, decisão do Ministro Luís Roberto Barrroso, nos autos da Medida Cautelar na ADPF 527DF, que deferiu, em parte, o pedido para determinar a transferência de transexuais femininas para presídios femininos, destacando a sua compatibilidade com a razão de decidir de julgados do STF em que se reconheceu o direito deste grupo a viver de acordo com a sua identidade de gênero e a obter tratamento social compatível com ela”, diz trecho da manifestação.
Entenda o caso
A decisão questionada foi proferida em maio de 2021 após intenso debate pela 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. No caso concreto, a mulher alega que sofreu agressões que deixaram marcas visíveis, constatadas por autoridade policial. Ela narra que o agressor chegou em casa alterado e, ao tentar sair da residência, foi imobilizada e jogada na parede, foi empurrada e bateu a cabeça. Ainda foi ameaçada com um pedaço de madeira, mas conseguiu fugir.
O pai, por sua vez, disse que estava seguindo a filha para ver com quem ela saía e que, quando ela percebeu, se atirou na frente de uma viatura que passava e começou a acusá-lo.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador Francisco Bruno, entendeu de modo diverso. Ele alegou que os Princípios de Yogyakarta, (vinculantes, como já deixou claro o STF), estabeleceram vários direitos considerados de nível constitucional e inalienáveis.
“Todos esses direitos e obrigações são devidos; e, repito, ninguém (de bom senso, é claro) discordará disso. Porém, nenhum deles dá ao transgênero masculino o direito de ser considerado mulher; nenhum, para colocar de outra forma, autoriza a afirmativa de que ‘transgênero feminino = mulher’ e ‘transgênero masculino = homem'”, escreveu em seu voto.
O magistrado defendeu a criação de legislação específica para transexuais e que a “a equiparação do interessado a mulher (e a esta está vinculado o pedido) ofende o princípio da tipicidade estrita e o da proibição da analogia in malam parten”.
Ele também argumentou que seria possível enquadrar o caso no artigo 319 do Código de Processo Penal, como sugerido pelo MP. Contudo, julgou que o caso concreto não dispõe de elementos para justificar o deferimento da medida protetiva, já que o pai, acusado, responde a um processo por desacato, mas nenhum relativo a crime com violência contra pessoa.
Voto divergente
Vencida, a única mulher a compor o colegiado, desembargadora Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida, proferiu voto divergente determinando a aplicação das medidas protetivas. Ela explicou que “não se pode uniformizar os conceitos de sexo, orientação sexual e gênero, sendo necessário realizar a distinção quanto à abrangência da assinalada proteção específica”.
“O que a legislação em referência protege frente aos assinalados conceitos é o gênero e este, respeitados os entendimentos contrários, possui máxima dimensão social/cultural, não biológica”, prossegue. “Daí por que o resguardo legal não se restringe apenas ao sexo feminino, mas, sim, ao gênero feminino, o qual engloba não somente mulheres cisgênero como as transexuais, as travestis.”
“De outro ângulo, estender-se a proteção especial às transexuais, que são socialmente vulneráveis em perspectiva de gênero, é forma concreta de se garantir a máxima amplitude e efetividade aos direitos fundamentais”, concluiu.
Fonte: ConJur