Este assunto além de ser, a meu ver, atual e relevante, ainda é motivo de divergência entre os profissionais do direito.
Às vezes referida divergência é motivada mais por capricho, tão comum nos meios jurídicos, do que por convicções decorrentes da leitura e do estudo da legislação em si.
Pois bem, recentemente recebi a ligação de um conhecido informando que seu parente havia sido preso em flagrante por ter cometido um furto.
Ocorre que referida pessoa permanecia presa, haja vista que não teve condições de efetuar o pagamento da fiança estipulada pelo delegado de polícia, equivalente a um salário mínimo.
A primeira pergunta que me veio à mente e que motivou a redação deste artigo é: poderia alguém permanecer encarcerado somente pelo fato de ser pobre?
Afirmo que a pessoa era pobre justamente por acreditar que, acaso tivesse condições, preferiria pagar o valor estipulado a ficar presa. É a partir desta premissa que escrevi o presente artigo.
Voltando à questão, entendo que não, ou seja, ninguém deve permanecer preso somente pelo fato de não ter conseguido efetuar o pagamento da fiança. Digo isto com base na interpretação que faço da legislação, senão vejamos.
O Código de Processo Penal disciplina no artigo 321 e seguintes as hipóteses relativas à liberdade provisória, com ou sem fiança.
De acordo com referido artigo o juiz deverá conceder liberdade quando ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva.
O artigo 322, a seu turno, prescreve que a autoridade policial poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos.
A primeira conclusão que emerge da leitura dos dois dispositivos é a de que o delegado não poderá estipular fiança para o caso de uma infração afiançável, mas que foi praticada de modo a possibilitar a decretação da prisão preventiva. Aliás esta conclusão é reforçada pela leitura do artigo 324, IV, do CPP.
No caso que foi levado ao meu conhecimento o suposto autor da infração teria sido surpreendido cometendo uma subtração, que inclusive foi classificada pelo delegado como furto simples cuja pena máxima é de quatro anos.
Naquela oportunidade, com salientado, a autoridade policial arbitrou fiança, mas não colocou o preso em liberdade pelo fato de o valor não ter sido recolhido.
Acredito que a conclusão é intuitiva, mas a liberdade somente não foi concedida àquela pessoa pelo fato de não ter tido à disposição, naquele momento, a quantia equivalente a um salário mínimo.
Alguns leitores até poderiam afirmar que não dispõem da quantia indicada. Contudo, será que não conseguiriam atingi-la mediante empréstimo com parentes, por exemplo? Concordam que ninguém em sã consciência optaria por ficar na prisão se tivesse condições de amealhar a quantia indicada? A pessoa a que me refiro não teve.
Desse modo a pergunta veiculada no título vem à tona: o delegado poderia mantê-lo na prisão após constatar seu estado de miserabilidade? A resposta é não e a meu ver decorre da própria lei.
O artigo 325 do CPP dispõe que “o valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder”. O parágrafo primeiro por sua vez faculta à mesma autoridade dispensar o preso do pagamento, reduzir o valor ou aumentá-lo.
A simples leitura deste dispositivo não daria margem à discussão. Ocorre que o inciso “I” do aludido parágrafo menciona que a dispensa da fiança será efetivada de acordo com o disposto no artigo 350.
Este artigo, no entanto, prescreve grosso modo que “nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória” – sem fiança.
Aí reside toda a controvérsia. Os que defendem que somente o juiz poderia dispensar o pagamento interpretam este dispositivo literalmente. Argumentam que se o legislador quisesse conferir tal prerrogativa ao delegado teria feito menção a ele expressamente.
Ocorre que este entendimento, com o devido respeito, não se sustenta. Todos sabemos que a interpretação literal é importante, mas não a única. Desse modo não podemos utilizá-la para restringir um direito (liberdade) que a própria Constituição Federal em seu artigo 5º, caput, reputa fundamental.
Devemos levar em consideração que o caput do artigo 325 não faz distinção entre autoridade policial e judiciária para fins de concessão da fiança, motivo pelo qual ambas poderão concedê-la e fixar-lhe o respectivo valor.
A restrição imposta ao delegado de polícia quanto à concessão restringe-se apenas à quantidade da pena cominada – em abstrato – no preceito secundário da norma; para tanto basta que seja lido o disposto no artigo 322 a que se fez menção.
Outra questão que depõe a favor da possibilidade de o delegado dispensar o recolhimento da fiança reside justamente no fato de poder aumentar-lhe o respectivo valor em até mil vezes após a análise das condições pessoais do preso; vide artigo 326 do Código de Processo.
Desse modo a restrição supostamente imposta ao delegado no sentido de não poder dispensar o recolhimento da fiança é um paradoxo.
Caso chegue ao seu conhecimento que determinada pessoa, abastada materialmente, milionária por assim dizer, cometeu uma infração afiançável, poderá aumentar o valor da fiança em até mil vezes. Assim estaria, de certa forma, fazendo “justiça” ao tratar os presos de acordo com sua situação econômico-financeira, impondo um ônus maior àquele que tem condições de suportá-lo.
Contudo, caso o delegado perceba que o infrator é miserável não poderá, ao ver daqueles, dispensar-lhe do pagamento por ser esta uma atribuição exclusiva do juiz.
E é aí que se encontra o problema. O delegado de polícia, após a análise das condições pessoais do preso, poderia arbitrar um alto valor a título de fiança, mas em contrapartida, mesmo estando ciente do estado de miserabilidade de outro detido não poderia dispensá-lo do pagamento sob o pretexto de que esta função é exclusiva do juiz. Em resumo uma infração afiançável se tornaria inafiançável para aquele que não tem condições de proceder ao recolhimento do valor, o que é um contrassenso.
Ocorre que se continuarmos a analisar o Código de Processo como um todo veremos que o artigo 32, parágrafo segundo, confere ao delegado a possibilidade de atestar o estado de pobreza de qualquer pessoa mediante uma simples declaração.
Assim, como sustentar que o delegado pode atestar o estado de miserabilidade de alguém e ao mesmo tempo mantê-la presa justamente por ser pobre? É nítida a contradição existente entre os dispositivos do Código, os quais devem ser interpretados à luz da Constituição.
Esta, por sua vez, estatuiu que a liberdade é a regra, não a prisão. A presunção de inocência é a regra, não a culpa.
Também é importante destacar que a mesma Constituição prescreve que a afiançabilidade é a regra, caso contrário não teria mencionado especificamente os crimes que reputa inafiançáveis, como o racismo por exemplo.
Dessa forma posso concluir, respeitando quem pensa de modo diverso, e respondendo à questão inserida no título, que os delegados de polícia têm o dever de colocar em liberdade àquele que deixou de recolher a fiança por falta de condições.
Se não o fazem – estou incorrendo no risco de generalizar, é outra história.
Advocacia André Pereira