Para enfrentar o racismo, “essa chaga que nos envergonha e nos diminui em humanidade, precisamos, antes de mais nada, deixá-la visível e adotar, institucionalmente, práticas antirracistas para reduzir os danos, respeitando a intensidade da dor que o preconceito produz”. Essas foram algumas das palavras escritas pela desembargadora Andréa Pachá, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na decisão que manteve a obrigação do supermercado Assaí de indenizar um menino negro, de 10 anos de idade, abordado de forma violenta pelo segurança de uma loja do grupo no bairro de Jacarepaguá.
O fato ocorreu em outubro de 2019. De acordo com o processo, o menino entrou no supermercado junto com os pais, mas se separou deles por alguns instantes para devolver um carrinho de compras à entrada do estabelecimento. Quando voltou, estava assustado, chorava e tinha o pescoço vermelho por ter levado um mata-leão de um segurança. Diante do protesto dos pais, o gerente justificou o ato dizendo que havia no local grande incidência de furtos cometidos por crianças e adolescentes.
Consta na sentença de primeira instância, que condenou o supermercado a pagar indenização de R$ 30 mil por danos morais, que o exame de corpo de delito revelou vestígios “de lesão à integridade corporal” do menino. O caso passou a ser acompanhado pelo Conselho Tutelar e, nas sessões de terapia, o garoto demonstrou medo de sair às ruas, de ver policiais ou pessoas vestidas com uniforme de segurança.
A sentença traz trechos da avaliação psicológica para justificar a decisão de condenar o supermercado: “Nas avaliações/testes HTP e Rorschach apresentou no levantamento dos mesmos os principais traços: medo, insegurança, auto estima baixa, introversão, depressão e ansiedade. Relatou durante as sessões que nunca mais iria entrar em um mercado ou atacadista Açaí pois sentia muito medo. Relatou pesadelos, receio de dormir sozinho no quarto. Trouxe questões sobre a violência sofrida e sobre as crises de pânico só de lembrar do fato ocorrido. Durante alguns meses não sentiu a vontade de sair na rua entrando em isolamento. Mesmo com os pais se sentia inseguro uma vez que quando ocorreu a violência no atacadista os pais estavam com ele no local e os irmãos. Conforme o tratamento foi acontecendo Nicolas Davi foi apresentando melhoras significativas em relação ao isolamento, insônia, insegurança de sair nas ruas e pânico (…)”.
O supermercado recorreu da sentença, mas, nesta quarta-feira (9/2), a 3ª Câmara Cível do TJ fluminense manteve, em decisão unânime, a obrigação do supermercado de pagar a indenização. A relatora do recurso, Andréa Pachá, apontou que, nesses casos, a responsabilidade do fornecedor de serviços é objetiva. Por isso, ele responde pelos danos causados, arcando com os riscos de seu empreendimento.
A desembargadora, contudo, não se restringiu à análise da relação de consumo. Para a magistrada, a tentativa de transformar uma abordagem “violenta e racista” em exercício regular de direito “revela não apenas a naturalização” com que o supermercado lida com o preconceito, “mas também o descompromisso com o respeito que se deve ter com uma criança de 10 anos de idade”.
Segundo o voto da desembargadora, a prova produzida no processo revela a indignidade experimentada pelo menino, “não se tendo notícias de abordagem similar envolvendo uma criança branca, em condições similares”. Para Pachá, os fatos mostram que “além de deixar de garantir a segurança e incolumidade de seus clientes”, o supermercado, por meio de seu segurança, “atuou em evidente violação das regras mais básicas de convivência social, abusando de direito e causando danos irreparáveis, na perspectiva humana”.
A justificativa do supermercado, de acordo com a magistrada, revela que a empresa se julga no direito de exercer arbitrariamente as próprias razões. “Mesmo que no local haja incidência de furtos, praticados por crianças e adolescentes, tal fato não autoriza quem quer que seja a abordar agressiva e violentamente os menores de idade, violando não só o princípio da presunção de inocência, como a garantia do devido processo legal. Impossível decidir sobre o conflito trazido nos autos sem registrar, de forma objetiva, a tentativa de normalizar o racismo, como se fosse possível determinar quem são ‘os suspeitos de sempre’, a partir da cor do corpo”, escreveu a desembargadora em seu voto.
Andréa Pachá ainda cita trechos do livro “Racismo Estrutural”, do advogado e professor Silvio de Almeida, em que ele explica que o “racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”. Exatamente por isso, para a desembargadora, “o racismo que nos estrutura deve ser enfrentado também na perspectiva da reparação, a fim de que a prática do preconceito não se naturalize, nem se perpetue”.
Fone: ConJur